Um passinho à frente e Emílio Domingos não está mais no mesmo lugar. Desde 2022, o diretor carioca — que assina o recente documentário “Os Afro-sambas – O Brasil de Baden e Vinicius” — faz parte da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (no original, Academy of Motion Picture Arts and Sciences), baseada em Los Angeles, Califórnia, responsável pelas indicações ao Oscar e, claro, pela badalada cerimônia anual de entrega dos prêmios. Ao lado de nomes como Fernanda Torres, Wagner Moura, o músico Plínio Profeta, a produtora Tatiana Leite e a figurinista Claudia Kopke, ele representa o Brasil no grupo de cerca de 10 mil profissionais de 57 países que compõem a Academia. “Na prática, isso significa que posso votar nos indicados a melhor documentário e também nas categorias principais, como melhor filme, melhor ator etc. Vejo também os filmes em primeira mão”, conta ele, sentado à minha frente, no café de uma livraria em Botafogo. “Acho ótimo estar na Academia, fiquei muito feliz com o convite, que mostra um reconhecimento, dá uma legitimidade para o meu trabalho, mas sei que estou ali porque eles querem diversidade, é o reflexo de uma abertura de mercado. Mas nunca tive essa meta, nunca fiz nada pensando nisso porque as minhas escolhas nem sempre batem com o que é o padrão do mercado. Sempre fui muito da estética ‘faça você mesmo’.”
Fazendo ele mesmo, mas sempre muito bem acompanhado, Domingos acumula, além de “Os Afro-sambas”, outros três lançamentos em 2025: “As dores do mundo – Hyldon” (ao lado de Felipe David Rodrigues), “Anos 90 – A explosão do pagode” (ao lado de Rafael Boucinha) e “Baila, Vini” (como roteirista e diretor, ao lado de Andrucha Waddington). No primeiro, desvenda os mistérios e encantos do cultuado álbum de Baden Powell e Vinicius de Moraes, lançado em 1966. No segundo, homenageia o ícone da soul music brasileira. No terceiro, mergulha na onda que sacudiu o samba antes da virada do século. E no último, registra os dribles do craque do Real Madrid nos zagueiros e no racismo. Colados com a estreia, em 2007, com “L.A.P.A.” (ao lado de Cavi Borges), que retrata o bairro onde floresceu a cultura hip-hop no Rio, e com “A batalha do passinho”, de 2012, sobre o bailado da juventude das comunidades da cidade, chega-se a um quadro maior, que marca dez documentários assinados por Domingos — a conta inclui também “Deixa na régua”, “Favela é moda”, “Chic Show” e “Black Rio. Black Power” —, inevitavelmente levando a um balanço pessoal.
“Esses quatro lançamentos em 2025 foram uma coincidência, mas essa marca de dez filmes, claro, me faz pensar na trajetória que percorri, nas apostas que fiz, sem saber direito onde ia chegar. Isso passou bem na minha frente enquanto estávamos filmando o documentário do Vini, com toda aquela estrutura da Conspiração, que é incrível, que faz tudo acontecer, com filmagens na Espanha, nos jogos etc. E, ao mesmo tempo, eu estava fazendo o filme do Hyldon, um trabalho mais intimista, com bem menos recursos, quase artesanal. Foi bom perceber esse contraste para não esquecer de onde eu vim.” Curiosamente, Domingos vem de outra academia. Formado em Ciências Sociais pela UFRJ, com especialização em Antropologia Visual, Cultura Urbana e Juventude, ele fez mestrado em Cultura e Territorialidades pela UFF. Sua conexão com a música — tema da maioria dos seus trabalhos — vem dos bailes soul, que frequentou na adolescência, e da conexão com a então emergente cultura hip-hop carioca, centralizada na festa Zoeira, da produtora Elza Cohen, realizada numa sinuca na Lapa, no final dos anos 90.
“Ir na Zoeira era uma coisa quase religiosa para mim. Às vezes não tinha grana, só tinha o dinheiro da passagem e a Elza me botava para dentro. Tinha uma relação muito afetiva com a festa, tanto que meu primeiro curta, ‘A palavra que me leva além: estórias do hip-hop carioca’, de 2000, foi lançado ali. A pista até parou para passar o filme”, diz ele, que depois criou a própria festa, Phunk, onde atuava como DJ, com o codinome Saens Peña, ao lado dos amigos Fred Coelho (DJ Arthur Miro) e Dani Labra (DJ Coisa Fina). “A festa era uma extensão dos bailes que a gente fazia na faculdade. Tocava hip-hop, mas também soul, drum and bass, samba, qualquer coisa que tivesse groove.” Se “L.A.P.A.” foi o primeiro exercício na área documental, “A batalha do passinho” foi o momento de virada para Domingos, o trabalho que o colocou, definitivamente, no mapa. Com imagens gravadas nas comunidades do Morro do Borel, Andaraí e Salgueiro, todas na Tijuca, o filme deu dimensões cinematográficas à frenética dança que já se espalhava na periferia da cidade, popularizada em registros no YouTube.
“Eu já conhecia o passinho por causa desses vídeos quando fui chamado para ser jurado de um concurso. Aceitei, no entusiasmo, mas acabei recusando na mesma hora porque sabia que não tinha conhecimento técnico para ser jurado. Propus, então, filmar a competição, fazer um curta. Mas quando cheguei lá, vi que a relação dos garotos com a dança não era um hobby, um negócio de fim de semana, era algo muito mais complexo e interno. Daí resolvi fazer um longa, apesar de não ter grana alguma.” Mesmo sem dinheiro, o novato diretor acabou formando uma equipe, custo zero, que acreditou na história e resolveu mergulhar nela ao seu lado. “Acompanhamos a vida daqueles garotos durante um ano, um período de muitas transformações e mudanças na vida deles, incluindo a morte de um dos protagonistas, o Gambá, que foi assassinado por um segurança de rua. Isso acabou juntando todo mundo ainda mais em torno do projeto. A gente acabou o filme numa quinta-feira e, no domingo, ele foi exibido no Festival do Rio, com todos os garotos na plateia, se vendo na tela grande pela primeira vez. Foi muito emocionante.”

Imediatamente depois de “A batalha do passinho”, que ganhou o prêmio de Melhor Documentário no festival e repercutiu na “CNN” internacional e no “Guardian”, Domingos emendou – já com sua própria produtora, Osmose – com outros dois filmes também ligados àquele ambiente: “Deixa na régua”, sobre os salões de barbeiros, e “Favela é moda”, sobre as agências de modelos da periferia, no que ele chama de “trilogia do corpo”. “Quando estava filmando o ‘Passinho’, comecei a notar os cortes de cabelos dos garotos, que me pareceram vanguardistas, muito futuristas, cheios de detalhes geométricos. E a partir de um interesse estético, acabei descobrindo, nesses salões, um espaço de sociabilidade, de conversas intensas sobre o que é ser jovem na periferia. Com o ‘Favela é moda’, acabou rolando algo parecido. Vieram me falar que eu tinha que conhecer uma agência de modelos do Jacarezinho. E terminei, ao longo de quatro anos de filmagens, registrando uma série de debates e discussões sobre padrões estéticos, circulação e moda na periferia.”
O diretor, porém, não vê seus filmes enquadrados na onda “favela movies”, como foram rotulados alguns filmes que seguiram – ou tentaram seguir – os bem-sucedidos passos de “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, de 2002, que teve quatro indicações ao Oscar. “Nunca quis reforçar a ideia da favela só como um lugar violento. Sempre tive muito cuidado em relação a isso. Quero mostrar que também é um lugar de criação, um grande laboratório cultural, em que as pessoas criam estratégias de sobrevivência. E onde os jovens têm um papel fundamental nessa liberdade criativa porque, afinal, são jovens, estão tendo novas ideias de se relacionar com o mundo da melhor maneira possível”, explica ele, que também dá aulas de direção cinematográfica na PUC-RJ. “Nas aulas, procuro desmistificar essa ideia do cinema como algo inacessível, que só é possível pelas grandes produções de Hollywood, com o diretor naquela cadeira, fumando um charuto. E faço isso a partir da minha própria experiência com os garotos do passinho, que usavam os celulares para fazer seus filmes para o YouTube, rompendo diversas barreiras com isso. Aprendi muito com eles.”
Fã de diretores brasileiros como Affonso Uchoa, Adirley Queirós e André Novais, e de estrangeiros como Spike Lee, Jordan Peele e Ryan Coogler, Domingos prepara agora o seu primeiro filme de ficção. “Estou desenvolvendo um filme ligado ao movimento Black Rio, inspirado naquele universo, onde estou mergulhado há mais de dez anos. O roteiro está sendo dividido com o Paulo Lins e a Letícia Monte, extraindo material de muitas histórias que realmente aconteceram.” Antes de pagarmos a conta – dois cafés, uma água e um bolo de cenoura com chocolate bem fofinho –, pergunto se esse seu passo à frente do mundo dos documentários vai ter música também. “Sim, claro, a música permanece sempre ao meu lado.”