O apartamento de Rafael Moraes se debruça sobre a Avenida Paulista, seus prédios e seus fluxos. Mas as cortinas fechadas e a coleção de arte esparramada por toda parte nos convidam a outra viagem. São Brasis do passado, pequenas Áfricas, a Bahia de Caymmi, terreiros, arte conceitual dos anos 1970, fios de uma coleção que ele monta a partir do que define como “atravessamentos”. Ao entrar ali, já não sabemos bem em que tempo-espaço estamos.

Mas existem pistas importantes concentradas no escritório. Nas estantes de madeira, o original de “Carinhoso” escrito pelas mãos de Pixinguinha, convive com uma poesia do Castro Alves; a letra de “Acontece”, de Cartola; uma carta de Lima Barreto contestando um crítico está perto de uma redação escolar escrita por Pelé ou do testamento rabiscado de Lampião. O Brasil negro, carioca, baiano, nordestino tem ali protagonismo, entre fotos, documentos e manuscritos.
Antiquário comerciante de joias brasileiras — das ditas joias de crioula dos séculos 18 e 19 àquelas desenhadas por modernistas como Burle Marx ou Di Cavalcanti —, Rafael é um conhecedor e amante de música. Amigo pessoal de Maria Bethânia — um bordado feito por ela estampa o céu de Santo Amaro —, comprou o piano que pertenceu a Vinicius de Moraes e costuma receber a cantora Alaíde Costa (“uma das pessoas mais importantes da minha vida”), entre outros amigos para pequenos encontros e audições. A história cultural contada no apartamento vai um tanto vivida ali também.

Neto de uma joalheira de Santos, ele vinha desde adolescente a São Paulo comercializar antiguidades. Foi numa feirinha que conheceu Emanoel Araújo (1940-2022), às vésperas da criação do Museu Afro Brasil e, graças a ele, todo um mundo. “Ele apareceu já me provocando. Deu aquela faísca boa, não nos desgrudamos mais. Foi um homem que fez muita coisa pelo Brasil, pela arte brasileira. Emanoel me mostrou todos os artistas que eu aprendi a amar e conhecer: Rubem Valentim, Mestre Didi…”
Foi com ele também que descobriu o pintor Paulo Pedro Leal (1894-1968), um autodidata com repertório ligado aos festejos e hábitos populares que se tornou uma de suas obsessões. Hoje, concentradas no escritório, estão aproximadamente 12 pinturas do artista, entre elas “Audição de piano”, que estampa a capa do último livro de Lilia Moritz Schwarcz, “Imagens da branquitude” (2024). “É um dos pintores mais trágicos do Brasil. Ele constrói essa audição de piano, essa cena extremamente burguesa. Mas quem é a principal espectadora? A mulher negra com a bandeja atrás. É lindo, né? É para ela que ele faz essa cena toda.”

Embora seja um colecionador importante — já doou obras para museus como Masp, Pinacoteca ou Centre Pompidou —, a alcunha não lhe cai bem. “Acho que o colecionador tem uma neurose de posse, coisas guardadas em depósito para dizer que tem”, sugere. “A gente não é dono de nada, né? A gente cuida das coisas. Tudo isso aqui já existia antes de eu nascer. São passagens, trânsitos. Eu me considero uma pessoa que reúne obras de arte para justificar a minha presença neste plano espiritual tão curto e confuso. A arte é uma energia que tem que vibrar. Enquanto faz sentido, está perto de mim. Uma hora que não faz mais sentido ou que tem um chamado maior, vai.”
Concebido por Felipe Hess 13 anos atrás, o projeto arquitetônico deixou um único dormitório e, a pedido de Rafael, transformou o apartamento numa “tela em branco” a ser preenchida: nascem, assim, os espaços fluidos e neutros vestidos com a coleção, protagonista absoluta e incontestável.

Por toda a sala, pelo quarto, pelos banheiros, o conjunto de obras se estabelece a partir de dois eixos principais: por um lado, estão alguns dos maiores artistas ditos populares do Brasil: Mestre Vitalino, Chico Tabibuia, Zé Bezerra (“O artista que tem o ateliê mais bonito do mundo, no Vale do Catimbau. Um lugar que todo mundo deve conhecer, porque é um sonho”), uma carranca de navegação do Mestre Guarany, para citar alguns.
Por outro, uma ênfase na arte conceitual dos anos 1970, pré-abertura política: Anna Bella Geiger, Carmela Gross, Tunga, Nelson Leirner, Waltercio Caldas e, em especial, os artistas comercializados pela galeria Luisa Strina, uma cliente de quem ele se tornou amigo. “Nos tornamos próximos, e eu me formei com as exposições e com obras dos artistas da galeria dela”, enfatiza. Deste conjunto, pululam pelas paredes obras de Leonilson (a primeira obra adquirida!), Cildo Meireles, Anna Maria Maiolino, Marepe, Fernanda Gomes…

Uma escultura de grandes dimensões de Angelo Venosa divide espaço com os móveis, eles também marcados pela brasilidade autoral: uma cadeira de Flávio de Carvalho, um sofá de Joaquim Tenreiro, um sofá do Willys de Castro (“o único móvel que ele fez, para uma amiga dele, a galerista Mônica Filgueiras”). Algumas obras estão fora, emprestadas para exposições em museus dentro e fora do país.
“Aqui é um autorretrato da Lygia Pape, da década de 1970. Eu demorei para comprar uma Lygia Pape, mas quando eu vi isso me apaixonei. Eu amo como ela se sintetiza: uma mecha de cabelo e uma geometria onde se lê EU.” Assim como esta, cada peça tem sua trajetória: de onde veio, a quem pertencia, por que está ali. De minúsculos objetos até o outro apartamento que mantém em Copacabana, no Rio, que um dia foi de Jorge Amado, parece imperar a máxima que ele usa para falar das joias: “Cada balangadã tem uma simbologia, tem uma história.”

Com orixás que guardam a entrada, o axé também se faz presente em pequenos detalhes e nas várias fotografias da ialorixá Mãe Senhora, mais uma das figuras de referência para Rafael, assim como o poeta Ferreira Gullar (“Um grande amigo. Uma pessoa que eu choro de saudade”). “Me sinto muito privilegiado de ter tido o atravessamento de pessoas tão potentes: Emanoel, Alaíde, Gullar, Bethânia, Luisa.” Entre passados e presentes, o tempo em toda sua magnitude se faz sentir. O Brasil é um mundo inteiro.
