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Tarsila S.A.: Dinheiro sobre tela

Na SP-Arte surgiu uma nova pintura a óleo, “Paisagem”, de 1925, assinada por Tarsila, mas que alguns marchands asseguravam ser falsa. Ela poderia valer R$ 60 milhões – ou nada. O racha na família de Tarsila e o estabelecimento do novo comitê de autenticação produziu uma situação sui generis: vai sempre haver dúvidas.

Na SP-Arte surgiu uma nova pintura a óleo, “Paisagem”, de 1925, assinada por Tarsila, mas que alguns marchands asseguravam ser falsa. Ela poderia valer R$ 60 milhões – ou nada. O racha na família de Tarsila e o estabelecimento do novo comitê de autenticação produziu uma situação sui generis: vai sempre haver dúvidas.

Quando o Museu de Arte Moderna (MoMa) de Nova York promoveu uma grande exposição de Tarsila do Amaral (1886-1973), em 2018, apontava uma tendência que iria se confirmar nos anos seguintes em favor da artista brasileira. Ela tinha potencial de se tornar, para o País, o que Frida Kahlo é hoje para o México, uma pintora internacionalmente famosa, valorizada e atual, que representa não apenas uma maneira própria de ver o mundo, mas a cultura de seu país. Desde então, Tarsila tem avançado para uma posição de destaque. Exposições posteriores em Paris, na Espanha, no Chile, além de uma mostra em São Paulo que atraiu muitos visitantes, e o uso de sua obra em camisetas, bolsas e xícaras contribuíram para sua notável popularidade entre os pintores brasileiros.

No mercado de arte, no qual todo valor simbólico é rapidamente convertido em valor monetário, sua cotação chegou às alturas. Em 2019, o MoMA de Nova York comprou o quadro “A Lua”, de Tarsila, por R$ 75 milhões. No ano seguinte, foi leiloado outro quadro seu, “A Caipirinha”, que após uma disputa de 15 minutos saiu por R$ 57,5 milhões. Esta significativa cotação permitiu que, em 2022, uma galeria de São Paulo oferecesse a pintura “Segunda Classe”, obra grande e rara, por R$ 90 milhões. São cifras que superam de longe as de contemporâneos dela, como Alberto da Veiga Guignard, por exemplo, autor de “Vaso de Flores”, que por muitos anos figurou como o quadro mais caro vendido em leilão no Brasil, arrematado por R$ 5,7 milhões.

Esta mudança de patamar, que despertou grande apetite no mercado de arte, teve efeito similar nos herdeiros de Tarsila, que até então vinham convivendo bem para administrar seus direitos autorais e repartir a pequena herança que a artista deixou em vida. Ela teve uma única filha, Dulce, falecida quando a artista ainda era viva, mas deixou seis irmãos e dezenas de sobrinhos, que hoje se desdobram em sobrinhos-netos. Somam agora quase uma centena de herdeiros representados no espólio, que ainda corre na Justiça. Eles se desentenderam sobre os rumos da Tarsila S.A., empresa criada pela família para administrar todos os negócios envolvendo a artista, e o clã rachou em duas facções, agora em litígio judicial.

O embate, convertido numa constrangedora disputa pública, com troca de acusações de parte a parte, foi parar em jornais e emissoras de televisão, ampliando a discórdia. Não se trata, no entanto, de um escândalo exclusivamente doméstico, pois, além dos interesses privados da família, a briga tocou num ponto sensível, que poderá ter consequências imprevisíveis para o mercado de arte. O que está em jogo, além do controle do uso da imagem de Tarsila, e a partilha dos seus dividendos, é quem terá autoridade para autenticar uma obra sua. O tema, sempre delicado, tornou-se ainda mais sensível diante da espetacular valorização e projeção internacional da artista.

Obras de arte falsas participam do jogo do mercado como uma presença inconveniente, apesar de cotidiana. E, para evitá-las, algumas famílias ou representantes legais de artistas falecidos criaram comissões com legitimidade para dizer se determinado quadro é verdadeiro ou não. No caso da pintora, quem capitaneou o projeto foi a advogada e museóloga Tarsila do Amaral, conhecida como Tarsilinha, sobrinha-neta da artista que não apenas carrega seu nome como dedicou toda a vida à divulgação de sua imagem.

Em 2003, ela criou uma comissão de especialistas para examinar o conjunto da produção da tia-avó. À frente deles estava a pesquisadora Aracy Amaral, outra contraparente, atualmente com 93 anos, reconhecida nacionalmente como a maior especialista na obra de Tarsila. Ela já realizava pesquisas sobre o trabalho da artista nos anos 1960, época em que a pintora, limitada a uma cadeira de rodas e um tanto esquecida no Brasil, recebia visitas ocasionais apenas de estudantes colegiais para entrevistas.

Ao longo de cinco anos, o grupo examinou todas as obras disponíveis e incluiu as chanceladas como autênticas num Catalogue Raisonné, ou Catálogo Comentado, publicação colorida, em três volumes, que ganhou reconhecimento no mercado e na academia como uma obra de referência. Mas o trabalho não estava completo, pois novos quadros da artista surgiram, tanto encontrados escondidos em sótãos familiares quanto produzidos por falsários ardilosos.

É natural que um catálogo do tipo seja uma obra viva e esteja aberto a inclusões que possam ser certificadas. Por isso, Tarsilinha e seu grupo continuavam examinando os quadros que apareciam, pelo menos até 2022, quando ela se afastou da empresa em razão da disputa na família. Alguns herdeiros acusaram-na de não prestar contas dos dividendos e enriquecer mais do que os outros. Diante do escândalo público, ela saiu de cena, deixando órfão também o comitê de autenticação.

Quem assumiu a empresa e a responsabilidade pela imagem da artista foi Paola Montenegro, uma sobrinha-bisneta. A jovem de 27 anos simboliza a nova geração. Sua própria figura soa como repaginação de Tarsila: os mesmos traços da tia bisavó herdados da família, o penteado idêntico, mas os braços cobertos de tatuagens e as orelhas adornadas com piercings. Ela quis imprimir na empresa um sopro de modernidade, fez aumentar significativamente o número de seguidores da artista no Instagram e fechou parceria com sete fabricantes para produzir ampla linha de objetos com imagens de seus quadros — camisetas, canecas, agendas, porta-lápis.

No caso da autenticação, em concordância com os herdeiros que a apoiam, a aposta de Montenegro foi na ciência. Em pouco tempo na diretoria, ela já havia recebido cerca de 40 novas obras de Tarsila reclamando exame ou autenticação por parte da família. E, levando em conta que a grande especialista do antigo comitê tem hoje 93 anos, e todos os exames feitos para o catálogo foram avaliações empíricas, ou seja, confiando no olho dos experts, ela decidiu criar uma metodologia de análise com base em exames físico-químicos de padrão internacional.

No começo do ano passado, Paola e a família procuraram Douglas Quintale, um perito a quem a Justiça paulistana recorre para resolver questões envolvendo obras de arte, e começaram a elaborar a metodologia de autenticação dos quadros de Tarsila. A conversa prosperava, quando um escândalo precipitou o seu desenlace. Na SP-Arte, a maior feira de arte da América Latina, surgiu uma nova pintura a óleo, “Paisagem”, de 1925, assinada por Tarsila, mas que alguns marchands asseguravam ser falsa.

Uma das razões da extrema valorização da artista é a raridade de sua obra. Embora ela tenha produzido um número expressivo de desenhos, as pinturas a óleo, mais caras, são pouco mais de duas centenas, e aquelas feitas entre os anos 1920 e 1930, sua fase mais valorizada, não chegam a 50. Por isso, o surgimento de uma pintura que ninguém conhecia, e da melhor fase, não deixava de ser espantoso. E, apesar do pequenino tamanho da obra, próximo de uma folha de papel A4, poderia valer R$ 60 milhões — ou não valer nada, como um objeto decorativo, dependendo da comprovação de sua autenticidade.

O galerista Thomaz Pacheco, que intermediava a venda, e já tinha como interessado o Museu Nacional do Qatar, solicitou à família um parecer conclusivo, que foi confiado a Quintale. Assim, o perito assumiu oficialmente a chefia do novo comitê de autenticação das obras de Tarsila. Ele produziu um relatório de 174 páginas, elaborado ao longo de quatro meses. Seu método de análise tinha como base a descentralização das expertises, e os exames foram assinados por 14 diferentes profissionais.

No Laboratório Móvel do Instituto Federal do Rio de Janeiro a equipe utilizou equipamentos de luz ultravioleta, raios-x, infravermelho, microscopia e um scanner de alta precisão, raro no país, para analisar a composição química dos elementos do quadro. O mesmo grupo havia examinado, por solicitação da Justiça, outras obras conhecidas de Tarsila da coleção do falecido marchand Jean Boghici. Com esta base de dados, foi possível comparar desde as tramas do tecido utilizado na tela até os elementos químicos presentes na tinta e na base de fundo.

Um pesquisador foi contratado para investigar as informações sobre a procedência do quadro. O grafologista Vergílio Silvano Freixo, também perito judicial, ficou responsável somente pela confirmação da assinatura. A historiadora da arte Sandra Hitner, com longa experiência acadêmica, fez o exame estético das características da pintura. Quintale reuniu todos estes laudos e redigiu um parecer conclusivo: a obra era verdadeira. Grande notícia ao galerista Thomaz Pacheco, que traduziu o relatório para o inglês e o árabe e o enviou ao Qatar para que a venda prosseguisse. Um processo que, segundo ele, ainda está em curso.

Na mesma ocasião, no entanto, Tarsilinha, reunindo um grupo dissidente que representa 52% dos herdeiros da artista, emitiu um comunicado dizendo que esta parte da família não reconhecia qualquer autenticação realizada pelo novo comitê. Segundo ela, uma perícia científica não pode ser conclusiva sem uma base ampla de comparação, e somente os especialistas do grupo anterior, que conhecem intimamente a obra de Tarsila, teriam autoridade e domínio do assunto para dizer se uma obra é verdadeira ou não. Na sequência, a Associação das Galerias de Arte do Brasil (Agab), que reúne os 15 principais marchands do mercado secundário, também se pronunciou dizendo só reconhecer obras autenticadas pelo grupo de Tarsilinha.

O mercado de arte, conforme se sabe, tem verdades próprias. Se um interessado, por exemplo, saísse confiante depois de ler o laudo de 174 páginas referendado pela Tarsila S.A., sua fé seria inevitavelmente abalada ao visitar o escritório de Jones Bergamin, o Peninha, diretor da Bolsa de Arte. Peninha é um dos maiores marchands do país. Há 50 anos lida dia após dia com obras de arte, mantendo uma gaveta cheia de fotografias com falsificações. Ingenuidade é uma característica que passa longe dos seus atributos. É para ele que todo jornalista telefona quando precisa de alguma informação importante, porque é didático e gosta de falar. Neste caso, seu parecer é irrevogável: “Eu não reconheço, e o mercado não reconhece esta obra como legítima.”

Ele não chegou a ver o quadro pessoalmente. “Não preciso”, vaticina. Diz que é falso pelas fotografias que viu, e por informação de colegas que olharam a obra de perto e denunciaram o pastiche. “É uma vergonha, uma falsificação de três ou quatro anos atrás feita por um desses falsários aqui de São Paulo”, afirma. No mercado da arte, uma sentença como essa pode valer mais do que qualquer exame de microscópio.

Alguns marchands têm prestígio para legitimar uma obra, mesmo que não esteja no Catalogue Raisonné da artista. No Brasil, os raros milionários que possuem dinheiro para comprar uma tela de Tarsila orientam-se prioritariamente pela experiência de gente como Peninha ou Paulo Kuczynski, que não precisa olhar duas vezes para uma fotografia e dizer se a obra é boa ou ruim. Este pequeno grupo de galeristas acredita no seu próprio olho, ou no referendo de alguma especialista de renome, como Aracy Amaral, jamais num conjunto de cientistas pouco conhecidos no meio. E, sem o seu aval, nenhuma obra conseguirá ser socialmente aceita, por mais que tenha evidências científicas a seu favor.

O racha na família de Tarsila e o estabelecimento do novo comitê de autenticação produziu, então, uma situação sui generis. Douglas Quintale afirma que, desde que assumiu a coordenação do trabalho, além de “Paisagem” (1925), já certificou outras três pinturas a óleo e 15 novos desenhos de Tarsila, com sua metodologia baseada na “rigidez científica”, capaz de dissipar qualquer dúvida subjetiva. Uma classificação que, mesmo sendo oficialmente reconhecida pela empresa Tarsila S.A., dificilmente circulará no mercado sem alguma sombra de bastardia.

Quintale diz que já previa a resistência e chama a atenção para o conflito de interesse quando o próprio mercado precisa validar a legitimidade de uma obra. “É inconcebível que alguém, que venda ou compre obras de arte, continue a ser responsável por garantir o valor ou a autoria delas”, diz. Ele recorda o caso da centenária galeria Knoedler, de Nova York, uma das mais tradicionais do mercado norte-americano, que, em 2015, foi processada depois de vender dezenas de falsificações. Um episódio que, segundo Quintale, abalou o paradigma de certificação mundial, determinando uma mudança para “parâmetros cientificamente objetivos”.

Na prática, o que ocorreu em Nova York foi que as galerias e os experts continuaram referendando a autenticidade das obras de arte, mas passaram a recorrer a testes de laboratório para confirmar o seu parecer. Agora que Tarsila do Amaral desponta no panteão dos grandes artistas internacionais, soa evidente a necessidade de um diálogo entre a corrente “científica” e a da “tradição empírica”, para que sua obra receba o tratamento que merece.