Antes que o tédio batesse à porta como serviço de quarto, eis que os caçadores de tendência armados de reels até os dentes brancos-nevasca resolveram mudar o disco (tenho 50 anos e adoro o termo) do turismo, vamos dizer assim, experiencial. Já não acham muita graça nas bordas infinitas com vista para o mar de Réunion, tampouco os ovos beneditinos com avocado toast do Broadwick Soho – o negócio agora é dormir numa propriedade onde no século 19 um tanoeiro viveu com sete filhos e uma cabra chamada Esmeralda. Chama-se Heritage Property e, ao contrário do que o nome sugere, não tem castelo, nem “butler”: o que tem é história, charme e umidade nas paredes centenárias (que é charme também, vai). São propriedades nem muito grandes assim, tampouco de origem aristocrática ou real: é algo mais ou menos pé no chão não fosse a especulação imobiliária, a estrela que faltava no fetiche do novo rico de querer parecer desapegado e pagar os olhos da cara com a hashtag “feliz no simples”.
Paraísos perfeitos para o gourmand contemplativo e o minimalista radical, que viaja com um caderno e duas camisas de linho, estes híbridos de Airbnb com Relais Chateaux são comandados por famílias a quem os paulistas chamariam de quatrocentonas — só que, neste caso, são mesmo de 400 anos para trás. Claro que os tempos são outros e os burgueses de outrora, que seguem bacanas agora em espírito e saudade, resolveram arregaçar as mangas inconscientemente bufantes para transformar, em nome da sobrevivência financeira, as antigas propriedades em destinos turísticos para poucos e, com sorte, bons hóspedes. Acordaram meio tarde, mas sempre em tempo de dizer que pegar no batente tem a sua parcela de exotismo e diversão — e como adoram dividir as experiências laborais com os amigos marqueses entre um naco de melancia e um café em alguma mesa de uma masseria de Ostuni ao som das cigarras e do Spotify.
Trabalhar, quem diria, ficou chique. Claro que duas horas por dia, no máximo, com look de Isabel Marant combinando com as cortinas de algodão provençal. Mas eles são o diferencial, o que Georges V ou Mandarin jamais terão: e nada mais sexy para o hóspede, capitalizado até os dentes com suas apostas no mercado financeiro, que ser servido, recebido, atendido, bajulado por um quase sangue azul que, com toda a sua “nonchalance” e olhar de maresia sobre o mundo de hoje, oferece tudo aquilo que o dinheiro pode comprar — sabendo que a alma, o espírito, a história, o sangue, o olhar, o tempo não estão à venda. A propriedade? Depende da oferta, afinal não é fácil resolver goteiras e aquecimento em pé quando fecha o tempo e o timão se volta para aquele beach club em St. Barths onde ainda se pode fumar charuto indoors.
E se antes os ricos queriam ser servidos por serviçais de luvas brancas, agora, no melhor estilo “eat the rich”, são eles que se oferecem como anfitriões, arrumam as almofadas, explicam a origem da cerâmica local e sugerem o melhor azeite da aldeia. É o aristocrata em modo “Airbnb Superhost”, tentando converter seu brasão de família em estrelas na avaliação. Vai que o chique pega por osmose, né?
Mas atenção: antes de sair reservando com impulso burguês, saiba que certos proprietários sofrem de uma curiosa contradição existencial. Na tentativa desesperada de pagar IPTU sem abrir mão da honra familiar, anunciam suas casas com todo o fervor patrimonial, mas na hora de responder a uma simples mensagem (“boa tarde, ainda disponível para o fim de semana?”), agem como se tivessem recebido um e-mail do tataravô alertando que aceitar hóspedes estrangeiros é o primeiro passo para a ruína completa. É uma tensão interna: querem vender o peixe, mas não amolam a faca. Ou, no caso, querem o dinheiro da reserva, mas preferiam que o hóspede fosse invisível, indolor e, se possível, de linhagem reconhecida. Se você não tem um apelido aristocrático no sobrenome ou não começa a mensagem com “estimo que se encontre bem nesta sua nobre casa”, a resposta pode demorar dias ou nunca vir. Ainda assim, persistir vale a pena. Porque a nova sofisticação não é ser servido, mas se perder numa vila medieval com wi-fi duvidoso e pensar “eu poderia viver aqui” mesmo que só por três dias e a 2.000 euros por noite. E com sorte, no fim da estadia, você ainda ganha uma receita de família escrita à mão.
Confira algumas Heritage Properties pela Europa
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Trullo Monte Olimpo, Alberobello, Itália. Uma casa que parece ter sido construída por hobbits arquitetos e que tem todo o “je ne sais quoi” do sul italiano.
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The Old Smiddy, Highlands, Escócia. Uma antiga ferraria transformada em refúgio com lareira, vista para o nada e cheiro de madeira molhada.
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Casinha da Ribeira, Monsanto, Portugal. Onde as paredes são pedras e os tetos exigem que se abaixe a cabeça (e o ego).
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Casa dos Avós, Alentejo, Portugal. Com móveis herdados, portas que rangem e uma cozinha que obriga qualquer um a fritar um ovo no fogão a lenha só pelo storytelling.
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Maison du Temps Perdu, Saint-Cirq-Lapopie, França. Onde você acorda com o som de sinos da igreja e o leve pânico de ter voltado à Idade Média.
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Cueva Luna, Guadix, Espanha. Casa escavada na rocha, com teto de barro e frescor natural, ideal para quem quer experimentar a vida troglodita sem abrir mão de um bom colchão.
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Domus Civita, Civita di Bagnoregio, Itália. Villa com 900 anos de história, 90 degraus até a porta e, provavelmente, 9 fantasmas incluídos no pacote.
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Le Clos du Colombier, Burgundy, França. Uma antiga casa de campo entre vinhedos, com móveis que parecem ter vindo num dote de 1830. O café da manhã é servido por uma senhora que faz croissants com ressentimento e manteiga verdadeira. Chique.
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Xerolithia, Sifnos, Grécia. Paredes brancas, janelas azuis e vista para o mar Egeu. Parece cenário de filme, mas sem as armadilhas do “hotel design”. Aqui, design é a ferrugem poética da fechadura.
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Château de Lerse, Charente, França. Um castelo francês que, surpreendentemente, não virou resort. Tem jantares caseiros com queijo demais, vinho artesanal e sensação de que você deveria ter lido Proust antes de vir.